Cartas literárias

Tonicato e eu, estaremos lendo poesias e cartas literárias (inclusive uma inédita da Helena Kolody). Duração aproximada de uma hora e meia, intercalada por música instrumental do grande violista Gegê Félix.
Promoção de LaBeMol Produções Artísticas, com apoio da Choperia Colarinho.



Valeu Gegê e Tonicato!


Uma das cartas que li:

Neste momento não sei qual tratamento devo usar contigo.
Querido, prezado, caro ou estimado amigo? Nem sei se ainda somos amigos. Vou deixar em branco a saudação inicial de nossas cartas.
Não sei se o que vou escrever será uma carta literária ou apenas resposta à tua mensagem. Vou escrever assim mesmo, sem travas na língua, como sempre fiz.
Você escolheu um bom lugar para ler meu último e-mail impresso: Um banheiro público! É... na verdade, banheiro público, é o lugar certo para ler tudo o que escrevo. Quem sabe, nesses lugares, o papel gasto para imprimir minhas bobagens tenha uma utilidade.
Não vou me desculpar pelos palavrões do último e-mail. Sei que você odiou ler aquilo. Deve ter doído seus olhos ao ver palavras de baixo calão escritas por uma mulher que até há alguns dias você admirava. 
Você é tão gentil e educado que não conseguiu nem escrever literalmente a frase vá se foder. Mas tenho certeza absoluta que você sentiu muita vontade de dizer coisa bem pior e só não o fez porque sua educação refinada não permite.
OK. Não diga palavrão. Não me xingue. Mantenha a elegância, o cavalheirismo, mas admita que  lá no fundo, em voz baixa,  em pensamento ou em gestos, você me mandou tomar no símbolo do cobre, sem abreviar nenhuma palavra. Ou será que você nunca fez aquele gesto com o dedo "pai de todos", que significa exatamente o que escrevi... duvido!  
Nem sempre reajo com palavrões. Às vezes choro como todas as mulheres. Às vezes argumento, ilustro, gesticulo. Poucas vezes me calo. Depende da importância que aquela pessoa tem na minha vida. Uma coisa é certa: Se me calo é porque a pessoa já não tem importância alguma. É porque não vale a pena gastar com ela nem sequer um palavrão. É porque o que ela fez ou disse não me atinge mais. É porque a pessoa já me é totalmente indiferente.
Será que você compreendeu porque fiquei tão braba contigo? Você me envia poesias românticas e eu retribuo com xingamentos. Vá entender essas mulheres, não é? Você não tinha como compreender. Não estava vivendo o momento em que suas várias mensagens chegavam até mim. 
Meu celular e minha caixa postal estavam cheias de condolências, cobranças de despesas funerárias, questões trabalhistas ainda em fase de resolução, problemas de todas as naturezas que vieram à tona com o falecimento do meu ex-marido. Eu estava muito abalada, afinal, foram mais de vinte anos de convivência. Meus filhos (e dele), e parentes estavam muito tristes, precisando do meu colo, meu apoio. Eu, definitivamente não tinha tempo para nossas poesia e cartas literárias. 
A sua primeira mensagem me fez bem. Foi mais ou menos como as mensagens que os amigos enviaram e os abraços que me deram durante a semana que passou. Confortaram-me. Mas depois vieram outras, e outras e eu não respondia, não respondia, até que te mandei a fatídica mensagem que nos levou à esse ponto. Sua mensagem imediatamente seguinte veio com explicações e arrependimento. Foi como se,  os amigos e familiares, no dia seguinte à cremação, me ligassem dizendo “Desculpe-me pela mensagem e pelo abraço, foi tudo mentira”. Ou ainda “Expressei-me mal. Não sinto muito. Na verdade, não sinto nada.” E mais “Apague tudo o que já lhe escrevi, foi bobagem”. Também “Desculpe-me pelas palavras de carinho e consolo, eu gostava dele e de você, mas só escrevi por obrigação, me deixei levar pelo momento”.
Quanto mais você explicava, se desculpava, pior ficava. Mas que droga!  (Droga pode? ou também é palavrão pra você). 
Meses depois, cá estou me explicando, tentando me desculpar com você por ter sido tão grossa. 
Caso continuemos nos correspondendo, com certeza acontecerão outros fatos e desentendimentos iguais a este. Somos muito diferentes. Temos formação e maneira de expressar completamente diferente um do outro. Eu não vou fingir ser uma dama refinada (que não bebe, não fuma, nem diz palavrão) somente para lhe agradar, nem você vai virar um italiano grosso e blasfemento só para ser meu amigo. 
Além dessas diferenças, ainda existe outra coisa que tem nos deixado com a sensibilidade aflorada: É o fato de você ser homem e eu mulher. E mesmo sendo dois velhos cansados de guerra e termos deixado claro desde o início que nosso envolvimento seria pura e simplesmente literário, ambos precisamos apostar no jogo da sedução, na fantasia e na imaginação para ter inspiração.
As cartas (literárias ou não) sempre estiveram na mesa, amigo. Só que às vezes blefamos noutras blasfemamos e noutras  ainda, esquecemos as regras do jogo. 
Estamos jogando ainda? 
Te abraço / Marilda