Garotinha, sempre garotinha



Por Marilda Confortin e Tonicato Miranda
Marluci tinha treze anos quando abriu uma universidade numa área rural da cidade, perto de sua casa. Bicho do mato, curiosa, foi até lá, andou pelos corredores, espiou as salas de aula cheias de adultos bem vestidos e comportados. Todos os móveis eram novos e bonitos. Bem diferente do ambiente pobre da escolinha pública que frequentava.
Uma das portas estava semi-aberta. Entrou. Parou estupefata na frente da enorme mesa de imbuia maciça. Atrás da mesa havia uma imensa e ameaçadora cadeira de couro escuro vestindo um paletó cor de vinho. A grande cadeira intimidava duas cadeirinhas vermelhas encolhidas em frente à mesa. A garotinha partiu em defesa das duas:
Olha aqui, Dona Cadeirona, não brigue com as cadeirinhas. Elas são criancinhas ainda e estão aqui na escola pra aprender e não pra apanhar. A senhora é uma cadeirona feia e má! Eu não tenho medo de você! Não tenho rodinha, mas tenho boca, pé, mão e vou quebrar você no meio assim Ó!...
O diretor da universidade, retornando à sua sala,  parou na porta e ficou assistindo aquela cena hilária da garotinha batendo na sua cadeira.
─ Sabe o que vou fazer com você, Dona Cadeirona? Vou trancar você naquele banheiro e você vai ficar de castigo até aprender a não maltratar as cadeirinhas menores...
O homem deu uma grande gargalhada e a menina caiu no chão assustada.
─ Ô garotinha, quem lhe deu permissão para brincar na minha sala com minhas cadeiras?
─ São do senhor? Todas estas cadeiras?  
─ Sim. Mas a minha preferida é a Dona Cadeirona. De onde você saiu, criaturinha?
─ Ah, eu moro aqui perto, na roça. Tem alguma coisa pra eu fazer aqui nessa tal de universidade?  
─ Hummmm...  Você sabe fazer café? 
─ Sei!  – respondeu, Marluci.
Mentira. Nunca fizera café. Em sua casa só se tomava chá de erva mate com leite. Mandou-a fazer um cafezinho bem forte. Se ficasse do jeito que ele gostava, lhe daria um emprego.
Saiu feliz e saltitante. Na cozinha deparou-se com um fogão a gás. Um monstro. Não tinha fogão a gás em sua casa. Não sabia usá-lo. Caiu num choro compulsivo. Um professor apareceu na cozinha para tomar água. Penalizado, ensinou-a usar o fogão e fazer café. Equilibrando a bandeja, deslumbrada com as “xicrinhas” que pareciam brinquedo de criança rica, chegou à sala do diretor. Mais da metade do café já derramara.
O diretor disse que ela não servia para fazer nem para servir café e mandou-a embora. A garotinha se agarrou na perna do homem e começou a chorar novamente. Como ela não arredava o pé nem largava sua perna, perguntou se ela sabia usar um espanador. Pela expressão nos olhos arregalados, não sabia nem o que era um espanador, aquela menina.  Pegou sua mãozinha e conduzi-a pelos corredores da universidade em direção à biblioteca. Ela engoliu o choro rapidamente, restando apenas um soluço.
Marluci era uma coloninha muito miúda e ingênua. Parecia ter menos de dez anos. Vestia um calção de chita florido com elástico nas pernas. Nos pés, uma alpargata azul-marinho, bordada com miçangas coloridas. Camiseta branca, surrada, com o símbolo de uma escola municipal bordado na altura do peito. Cabelos muito brancos e lisos acima dos ombros, franjas cortadas retas. Enxugava com raiva as incômodas lágrimas usando as costas das mãos encardidas.
Chegando à biblioteca, paralisou. Nunca vira uma sala habitada por livros. Não teve coragem de entrar.
─ É aqui. – disse o diretor, empurrando-a para dentro da biblioteca. Tire todos os livros daquelas estantes, espane e coloque-os de volta, na mesma ordem. Volto mais tarde para ver se você merece o emprego.
Demorou a tarde inteira e só espanou a primeira prateleira das dez estantes. Começou justamente pela prateleira dos livros de filosofia. No fim da tarde o diretor flagrou-a imersa, sentada no chão, lendo “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Arrancou o livro da sua mão e gritou:
─ Eu mandei você tirar o pó, e não ler os livros! Você não pode mais vir aqui. Não é ambiente para crianças. 
Aquele professor caiu do céu novamente. Interferiu dizendo ao diretor que podia deixá-la sob sua responsabilidade. Ele ensinaria o trabalho e ficaria de olho nela.
A biblioteca foi seu primeiro emprego. Os livros, sua primeira paixão.
A segunda paixão foi Renato, o bendito professor de Química que sempre aparecia para salvá-la das encrencas. Ele tinha 25 anos e ela 13. Aos 14 ele a ensinou beijar na boca. Aos 15, ela apaixonou-se por Demian, um personagem de Herman Hesse. Aos 16 ela agrediu a tapas e ponta pés a esposa do diretor da universidade porque a flagrou se insinuando para o seu querido professor.
Foi sumariamente demitida. Mas o professor a socorreu novamente. Contratou-a como auxiliar em seu escritório. Assumiram o namoro para espanto daquela pequena e preconceituosa cidade. Ele era descendente de negros, nascido em Recife, tocava o “Anônimo Veneziano” no piano e recitava poemas de Augusto dos Anjos. Deu o primeiro e único livro infantil que Marluci ganhou na vida: “O Pequeno Príncipe”. Ensinou-a amar “Os Beatles” e “Os Rolling Stones”. Apresentou-a aos clássicos da literatura e da música. Ensinou-a tocar “O Bife” no piano e riam como duas crianças. Era cabeludo, fumava, tomava whisky e tinha a maior motocicleta da cidade. Era fiel, carinhoso e a mantinha virgem, pura de corpo e mente. Casariam quando ela atingisse a maioridade, dizia ele.
Quando completou dezoito anos, levou-a para um passeio até um recanto florido às margens do rio Uruguai.  Depois de muito beijá-la colocou uma linda aliança de noivado em seu dedo e disse que precisava confessar um segredo. Falou que era homossexual e que não poderia casar com ela, apesar de amá-la mais que tudo na vida.
─ Puxa, que bom! ─ Disse ela. Eu também te amo muito, mas não quero casar ainda. Quero conhecer outras cidades, outros países, outras culturas. Depois a gente casa, tá?
Ao jeito deles, fizeram amor.
Um mês depois ela saiu da pequena cidade, foi para a capital e sobreviveu algum tempo com a ajuda financeira que ele enviava, até conseguir emprego numa empresa de engenharia.  
Ele lhe escrevia uma carta de amor por mês. Visitava-a duas vezes por ano para saber estava tudo bem.
Passados seis anos, Marluci devolveu a aliança de noivado que Renato lhe dera no dia que disse que não se casariam. Enviou por Sedex, dentro de uma caixinha de madeira que ela mesma pintara, forrada de veludo branco, com uma carta perfumada, escrita com nankin sobre papel vegetal, agradecendo tudo o que ele tinha feito, dizendo que não precisava mais da sua proteção. Formara-se na faculdade e iria se casar com um bom homem. Convidou-o para ser seu padrinho de casamento. O professor estava tão bonito, tão elegante, tão gentil. Ela quase desejou que ele fosse seu noivo novamente.
--- 35 anos depois ---
Marluci chegou ao trabalho muito agitada, com a respiração ofegante. 
─ Pronto está feito!
─ Está feito o quê? – perguntou a colega diante daquela frase tão exigente de complemento.
─ Assinei os papéis da aposentadoria – disse Marluci.
─ Mas já? E como vão ficar aqueles projetos que...
Marluci não ouviu uma só palavra que a colega disse.
─ Ih, caramba, deixei um amigo me esperando. Tchau Raquel. Vou sumir por uns tempos. Assuma meu lugar aí.  
Assim disse Marluci pegando a bolsa e voando porta afora. De longe avistou o amigo Robermeio. Ele era uma figura. Meio louco, meio excêntrico, meio confuso.
Ao se aproximar, constatou que Robermeio não tinha nada de meio. Era um sujeito muito extravagante.  Vestia um paletó azul marinho, com o bordado de uma âncora enrolada por um magote de corda muito bem feito. Os botões do paletó eram em pano de um azul mais claro. O “blazer” estava sobre uma camiseta branca de algodão de primeira linha, caindo por sobre uma calça de sarja bege claro, muito elegante. No entanto, no pé um sapatênis branco cobria uma meia multicolorida, dessas usadas pelos palhaços, cheia de anéis, cada um de uma cor. Era seu jeito meio hilário de ser. Era sua maneira meio irreverente de protestar contra a sociedade a quem sempre chamava de Locomotiva das Almas.
Robermeio tinha uma insólita profissão numa empresa transnacional: Era botânico nuclear. Profissão esta que associava a Física Quântica à Botânica. E era muito bom nisso, tendo recebido vários prêmios internacionais. 
Mas o que ligava os dois não era a profissão e sim a música, poesia e a paixão pelo vinho.
─ Então vamos? – perguntou Marluci fingindo não perceber as meias coloridas e o exótico lenço de bolinhas que ele usou para enxugar o suor.
E foram no rumo de um supermercado, em busca de pão, mortadela, queijo e vinho. Levariam tudo para uma pequena casa que alugaram por uma semana e de onde somente sairiam após terem cumprido a promessa de compor cinco músicas.
─ E se não conseguirmos compor as cinco músicas? – Perguntou Robermeio.
─ Escuta, você assistiu o filme o “Anjo Exterminador”, do Luis Buñuel? Não?! Pois é, fiz um pacto com “o coisa ruim”. Enquanto nossas composições não acabarem ele não abrirá a porta, vamos ficar lá trancados.
Vendo Robermeio meio preocupado, meio querendo roer a corda do bordado do paletó, Marluci acrescentou:
─ É mentira, homem. Isto é apenas literatice da minha cabeça. Vamos embora.
Pactuados ou não com o “coisa ruim”, a verdade é que os dois ficaram exatos treze dias trancados na pequena casa.  
Robermeio tinha habilidade natural para o desenho e paixão por bicicletas. Entre uma música e outra regada com muito vinho ele lançou uma ideia:
─ Marluci, vamos fazer um projeto de uma cidade sem avenidas nem automóveis? Existirão somente ciclovias e trilhas para andar a pé. E todas as empenas cegas receberão haicais e poetrix. E nos cruzamentos ou interrupções dos caminhos terão quiosques com livros de graça.
─ E vinho...
─ Vinho, pão, queijo e bancos de ferro sob os Ipês amarelos. 
─ Você ainda não desistiu dessa história de Ipê Amarelo, Robermeio? Esquece os Ipês. Vamos plantar árvores frutíferas. Laranjas, pêssego, banana, pêra, maçã... Vamos encher a cidade de maçã que é pra Deus não precisar expulsar ninguém do nosso paraíso. E as trilhas serão cobertas por parreirais para fabricação de vinho.
─ Boa! E as praças serão enormes hortas de legumes, verduras e plantas medicinais.  
Robermeio desenhava a cidade cicloviária com centenas de modelos de bicicletas. Com uma roda, duas, três; duplas, triplas; altas, baixas; desmontáveis, dobráveis; com e sem bagageiro; com e sem proteção contra o vento; com um pedal só para os pernetas; com um guidão giratório para os manetas. Marluci só apontava os defeitos e escrevia pequenas poesias para colar nas placas e nas empenas.
─ Rob, tem que inventar alguma coisa pra substituir esse capacete ridículo dos ciclistas.  
E ele desenhava dezenas de capacetes, cada um mais estrambótico do que o outro.
─ Este tá legal, Robermeio. Agora projete uma estação de rádio que só vai transmitir música, poesia e cultura para a cidade toda. É pra isto essa antena o capacete, não é?
─ Bom, eu tava pensando num pára-raios, mas já que você falou em música, dá pra fazer uma adaptação...
─ E se chover, Rob?
─ Capas de chuva, ora. De todas as cores, estampas e tamanhos.
─ Hummm... E proteção para a bunda? Esses selins machucam pra caramba.
E Robermeio projetou vários selins ortopédicos e roupas almofadadas.
─ E os cegos?
─ O que tem os cegos, Marluci?
─ Como é que eles vão andar de bicicleta, homem?
─ Engatando sua caçambinha ou bicicleta de uma roda só na traseira de quem passar. Não viu os modelos que criei aí para os caroneiros?
─ Ah, tá...  E se for um ladrão pedindo carona só pra roubar a bicicleta?
─ E porque alguém iria roubar uma bicicleta se a prefeitura vai fornecer esse transporte para todos os moradores?
─ De graça?
─ Não totalmente de graça. Terá uma pequena taxa incluída no IPTU. Dará direito ao pão, leite...
─ Como assim?
─ Marluci, nossa cidade será muito saudável. Todos comerão frutas, legumes e verduras sem agrotóxico, colhidas nas ruas e praças. Não haverá poluição provocada por combustível. Andarão de bicicleta fazendo exercícios naturalmente. Ouvirão música e poesia o tempo todo. Serão cidadãos pacíficos, cultos e saudáveis. A prefeitura não gastará quase nada. Então porque não garantir pão, leite, água, vinho, escola, moradia e transporte com igualdade para todos os cidadãos?
─ ...tá certo. Você é um gênio, Rob. Vamos fazer mais uma música para tocar na nossa rádio?
Professor Renato chegara a Curitiba e estava parado na esquina da casa de Marluci. Não saberia precisar quais daquelas dezenas de janelas eram as do apartamento dela. Desistiu. Pelo menos por hoje não procuraria por Marluci.
Aposentara-se de tudo, menos do seu passado. Ela continuava a ser sua garotinha. Será? Seria ela a sua base? Ou ela seria seu ácido? Já se passara trinta e cinco anos. Ele agora tinha suas bengalas. Precisava delas para continuar trilhando a pele do planeta.  
Em sua vida tudo tinha sido provisório mesmo durando décadas. Menos o amor por aquela garotinha que não sabia fazer café. Que cena! “O cadeirona, será que você não sabe que na sua frente tem um monte de cadeirinhas que precisam de proteção?“ Que cena! – voltou a repetir para si. “Ai, quantas saudades! Chega. Chega! Não vou ficar aqui parado olhando para essas janelas, viajando no tempo de costas. Preciso descansar. Curitiba é muito distante de Recife. Amanhã...”
... o amanhã chegara. Hospedara-se num hotel na Rua Visconde do Rio Branco. Jamais visitara Curitiba. Queria saber se era mesmo fria. Pela temperatura naquele momento nada podia adiantar, fazia calor. Afinal ainda era verão e o “El Niño” andava estacionado por aqui como uma grande nave, semelhante aquela do filme do Orson Wells.
Nada tinha avisado a sua garotinha quanto à data de chegada. No último email enviado quatro meses antes de seu computador quebrar, dissera a ela que viria no verão, entre Fevereiro e Março.
O recepcionista do hotel disse a Renato, que todo fim de semana, passava uma mulher meio louca perguntando se ele estava hospedado naquele hotel e repetindo a pergunta em todos os hotéis do centro de Curitiba.
Era bem a cara da sua garotinha fazer isso...  Resolveu deixar um bilhete e sair para um passeio como todo bom turista, para Santa Felicidade. Estava interessado em conhecer a Festa de São Cristovão. E lá se foi na barriga de um ônibus expresso, no rumo do Campo Comprido, seguindo a orientação do porteiro do hotel.
Marluci andava pela rua falando sozinha: “E se aconteceu alguma coisa? E se ele adoeceu? E se morreu? Não, ele não faria isso...”
─ Tem alguém chamado Renato Dantas hospedado aqui neste hotel?
─ Pela última vez: NÃO TEM NINGUÉM COM ESTE NOME HOSPEDADO AQUI, minha senhora!
Desde Fevereiro ela fazia a mesma maratona. Todo santo sábado percorria os dez hotéis centrais a procura do seu professor de Química. Observava tudo e todos com olhos de primeira vez. Recolhia papeizinhos amassados, palitos de picolé e outros pequenos objetos jogados no chão como quem limpa a casa para receber uma visita importante.
No sábado anterior, o coração quase saltou pela boca ao ver uma pessoa, que de costas, parecia ser “o seu” professor. Correu e agarrou o braço do rapaz.
─ Larga sua doida!
Sentou-se num banco da Rua XV de Novembro, decepcionada e exausta. Percebeu que parara no tempo e esperava encontrar um homem de trinta anos. Seu professor devia ter agora sessenta e cinco anos de idade e ela já passara dos cinquenta.
Só faltavam dois hotéis da lista para conferir. Marluci entrou no penúltimo já esperando que o recepcionista chamasse a segurança, como fez no sábado anterior, depois da sexta vez que ela estivera lá insistindo para ver o registro dos hóspedes. Mas, ao vê-la, o recepcionista abriu um imenso sorriso e veio em sua direção balançando um envelope.
─ Ele está aqui! Ele está aqui! E deixou um bilhete.
As pernas amoleceram. A visão turvou e Marluci foi ao chão. Acordou minutos depois no sofá do saguão. O recepcionista massageava sua mão carinhosamente e abanava seu rosto. Ela abriu o envelope tremendo e leu o bilhete: “Querida garotinha, cheguei. Espere-me aqui. Sempre seu, Professor.
Num misto de riso e choro, desandou a beijar o bilhete falando “Meu professor querido, meu professor querido”. Pulava na ponta dos pés como se ainda tivesse treze anos. Os funcionários também riam e abraçavam-se emocionados. Uma das camareiras serviu-lhe um chá de camomila. Outra trouxe um espelho e um batom. O hotel inteiro sabia da sua história de amor.
Professor Renato chegou trazendo um ramalhete de flores do campo e um cacho de uvas maduras. Andou até o balcão da recepção e, como se ouvisse um chamado, virou-se mergulhando seu olhar nos olhos de Marluci.
A cena congelou como nos filmes de Fellini. Ninguém se movia ou respirava. Não havia um ruído. Os automóveis, as pessoas na rua, a cidade toda estancou. Um minuto? Dois? Cinco? O cacho de uvas caiu das mãos do professor em câmera lenta. Ao tocar o mármore branco do piso alguns grãos soltaram-se e rolaram até os pés de Marluci desenhando um caminho cor de vinho. Ela levantou-se, respirou profundamente, fechou os olhos e flutuou em sua direção, murmurando:
─ Meu professor querido!
Ele, de braços aberto recebeu-a repetindo
─ Minha garotinha!
Naquele mesmo sábado, Robermeio estava na esquina da Rua Coronel Dulcídio com a Rua XV de Novembro. Pretendia comprar um cachorro para presentear à Marluci. Não perguntara se ela queria. Era mesmo assim, não gostava de rodeios. Se ela não quisesse devolveria o cão ao estabelecimento comercial sem pedir nada em troca.
Foi até a loja identificou o cachorro peludinho. Não saberia dizer qual a raça, nem tampouco quis sabê-la. De imediato chamou-o de Ypsilone porque o cãozinho de pelo todo branco tinha na ponta da cauda uma bifurcação escura que parecia um “y”. Saíram os dois da loja. Ele com uma ponta da coleira na mão e o cão com a outra extremidade no pescoço. Treze passos depois viu que não daria certo. O cachorro era muito pequeno, seu passo muito grande. O cão era um bebê. Pegou-o no colo e seguiram a pé em direção a loja onde deixara a bicicleta para uma revisão.
Minutos depois, estava ele pedalando por ruas do centro de Curitiba com um cãozinho dentro de uma cestinha, presa ao guidão da bicicleta. Rodaram um pouco meio sem destino até que parou na Praça Osório. Ali amarrou a bicicleta numa árvore, tirou da mochila uma corda com 1,50 m de extensão, colocou o cachorro na mochila e esta às suas costas, foi até uma palmeira esguia que tinha surpreendentemente crescido ao lado de um carvalho, tirou seu sapatênis e pôs-se a subir a árvore ao modo dos nativos do litoral. Subiu até atingir a altura de um galho do grande carvalho. Ali passou com cuidado da palmeira para a árvore vizinha, amarrou a corda na cintura e no forte galho da sua hospedeira, recostou-se no tronco que subia ainda uns bons seis metros para o alto, tirou o cachorro da mochila e alimentou-o com uma pequena mamadeira de leite que havia comprado na loja.
Depois da sua breve ação paterna pegou o celular e ligou para Marluci.
─ Você precisa vir aqui. Tenho uma grande surpresa.
─ Mas estou ocupada. Tem uma pessoa que veio de muito longe para me ver. Vou almoçar com ele.
─ Venha agora, você não vai se arrepender. Traga esta pessoa também. Venha já!
─ Está bem, vou tentar.
Aquele venha tão peremptório no final do diálogo não deixava espaço para dúvidas, tinha de ir até lá.
Marluci e Renato se dirigiram a pé até a Praça Osório. A avalanche de perguntas dela nem dava tempo a ele em conceder as respostas. Ficou sabendo de forma breve que ele também se aposentara, tendo lecionado na Universidade Federal de Pernambuco; casara por apenas quatro anos, mas não tivera filhos; se dedicara nos últimos anos a Astronomia, depois se tornara membro da Sociedade Brasileira de Ufologia, apenas por encanto com o espaço estelar, mas sem muita convicção nos OVNIS. E mais não soube por que chegaram a Praça Osório e se puseram a procurar Robermeio. Foi ele quem os viu primeiro.
─ Ei! Olhem para cá!
Marluci rodou para um lado, rodou para o outro na sua saia de chita homenagem aos tempos de infância pobre e ao professor sem conseguir entender de onde vinha aquela voz, apenas identificada pelo timbre como sendo do amigo botânico. Sabia que ele não iria mais chamar. Fazia parte de sua personalidade mostrar-se e logo se esconder, não importando se o achassem ou não.  
Procurou-o alguns minutos, agarrada ao braço do seu professor, que calado, a acompanhava sem nada dizer, carregando no rosto um ar de idiota surpreendido e ao mesmo tempo com um ligeiro sorriso de tolerância amigável. Em certo momento ela colocou as mãos na cintura e olhou para o alto. E lá estava Robermeio, balançando-se pendurado na árvore, segurando o cãozinho.  
─ Desça daí já, ô maluco!
─ Não! Estou “de varde!”
─ Está nada. Desça já daí! Você quer me deixar nervosa? Veja, estou acompanhada de um amigo que veio me ver lá de muito longe...
─ Humm!!! Não, não vou descer. Vocês é que têm de subir.
─Olha que eu chamo o Corpo de Bombeiros!
Marluci sabia que Robermeio odiava todos os homens de farda. Para ele eram todos lacaios dos podres poderes. Todos apaniguados da ditadura dos conquistadores. Ele preferiria se jogar lá do alto da árvore, a obedecer a ordem de um fardado.
Desceu, deu o cachorrinho à Marluci e depois dos cumprimentos e da apresentação, sacou uma pequena faca de ponta, fez menção de cortar a própria garganta, mas se virou ligeiro e jogou a faca ao encontro da árvore onde tinha se hospedado por hora e meia. Caminhou até o pé de carvalho e esculpiu no tronco “Há mar no meio”. Dobrou a faca, colocou-a no bolso e saíram os três rumo ao Ristorante Spaghetto.
Pediram um penne a marinara com azeitonas pretas, acompanhado de um bom malbec Argentino, da Região de Mendonza, o vinho preferido de Robermeio.
Em certo momento, enquanto aguardavam a comida e o retorno de Robermeio que fora ao banheiro, o Professor tomou a mão de Marluci, colocou em seu dedo aquela mesma aliança de trinta e cinco anos atrás e perguntou:
─ Quer casar comigo, garotinha?

VOU-ME EMBORA PRA BRASÍLIA

Vou-me embora pra Brasília
Pasárgada é tão triste
Lá, Papai Noel existe,
E o dinheiro vem de pilha.

Lá terei na minha cama
Mulheres bem fornidas
Benesses autoconcedidas
Longas férias, muita fama.

Estarei com senadores
Viajarei mais que turista
Pago com dinheiro a vista
Do bolso dos eleitores.

Serei um rei absoluto
Com servos a me abanar
Champanha e caviar
Segurança e usufruto.

Andarei de Limusine
Com chofer e batedor
Trocarei o velho amor
Antes que ele me fascine.

Vou-me embora pra Brasília
De Pasárgada enjoei
Lá sou bem chegado ao rei
A vida é uma maravilha!

A civilização, oh!
Mãe Joana é graduada
Louca de Espanha, nada!
Veio lá do Cafundó.

Montarei quartos-de-milha
Subirei de elevadores
Tomarei banhos de flores
Vou-me embora pra Brasília.

Pasárgada - deu pra bola!
Nada mais cá me desfruta
As bonitas prostitutas
Em Brasília gastam a sola.

Pra Brasília vou-me embora
O processo é bem seguro
E o trabalho não é duro
Tudo lá chega na hora.

E se tão triste eu estiver
Triste tanto de morrer
O rei virá me socorrer
E trará outra mulher.

Lá terei um moto-boy
Pra buscar as encomendas
Alguém pra contar lendas
E enfermeira pro dodói.

Tem Internet banda larga
Celular de graça e mordomias
E se eu quiser orgias
Em Brasília é como praga.

Brasília é só alegria!
O Bandeira está por fora
Vivo se estivesse agora
Pra Pásargada não iria...

Vilmar Daufenbach

Se Deus fosse uma guria....

poesia de Elian Woidello


E se Deus fosse uma guria?
O sol nasceria iluminando
Toda alma vazia
Com delicadeza
E o mais frágil calor
Até tocar na janela do meu quarto
Como se possuísse chaves
Abriria a janela
E tocaria meu corpo até eu despertar
Toda chuva seria de perfume
E todo medo seria de ir embora cedo
Se Deus fosse uma guria
Toda noite seria de lua
Toda lua seria uma estrela
E toda estrela um desejo
Para a humanidade desvendar
Se Deus fosse uma guria
Os ateus seriam devotos
Com a tímida certeza
De um dia tocar o céu
Os devotos continuariam a temer o inferno
Mas amando de verdade o paraíso
Se Deus fosse uma guria
Eu calaria minha boca
E rezaria
Para estar dia a dia mais perto
Certo de amor
Todo dia...

(Elian Woidello)

Poesia Sofrer de Gota

GOTA
(para um amigo que sofre de Gota)

Ao saber que meu amigo sofria de “gota”,
fiquei deveras curiosa.
Como será essa doença misteriosa?

Procurei o professor Aurélio
para saber quão sério era o problema.

Ele me respondeu de um jeito feio,
que “Gotha foi um avião alemão
usado para bombardeio”.

Sério, Aurélio?
Um avião do século passado
caiu no dedão do meu amigo do coração?
Que estrago!

Achei meio estranha aquela explicação
e resolvi então pesquisar mais um pouquinho.

Mais adiante estava escrito,
de um jeito bem mais bonito,
romântico, quase poético,
que gota era uma partícula de líquido
transparente em forma de esfera ou pêra.

Pêra?
Péra aí!
Todo esse tititi
por causa de uma gotícula ridícula no pé?
O que é uma gota para um oceano, mano véio?
Isso não pode causar tanto dano!

Os homens são mesmo fracos.
(vai vê que é por isso que Deus lhes deu saco).

O pai dos burros já perdendo a paciência
me disse que gota dolorida
é outra história bem mais comprida:

"É uma forma hereditária de artrite caracterizada por hiperuricemia
 e recidivas paroxísticas agudas que ocorre numa articulação periférica."

Tem dó, dotô!
Eu sô caipira, pira, porra!
Traduza esse troço, moço!

Perguntei ao oráculo da net
qual era a causa desse castigo
que caiu sobre meu amigo:

"Elevação do ácido úrico no sangue gerando depósito de cristais de monourato de sódio"

Ai carmaba! Meu amigo é um Minotauro!
E tão sovina que guarda até a urina
pra transformar em cristal!

Que mania de acumular riqueza!
Se gastasse tudo em cerveja
se livraria desse mal.

Disseram que:
"A crise inicial
duraria de 3 a 10 dias
e desapareceria completamente.
O paciente voltaria a levar vida normal
e esqueceria o tratamento,
até que num momento de distração,
Poderia ter outra crise
e o infeliz lembraria do que foi prescrito....”

Hummm.... Que bonito isso...
Parece definição de paixão.
Quando a dor passa a gente esquece,
até que acontece tudo de novo...
Amor e gota, entram num círculo vicioso.

Bom, por ora, desejo melhoras
ao meu amigo gotoso.
E espero que esse lero-lero
Não o tenha deixado nervoso.
(marilda)

Diferenças

Diferenças
Homenagem a Marilda Confortin
por Hugo de Souza Vieira

Publicado originalmente em: Prosa de um homem da capital  

Hugo e eu, no Uruguai

Elas são vaidosas. Antes do encontro, tomam banho, se perfumam, hidratam o cabelo ou até mesmo vão ao cabeleireiro enfrentar horas de escova, chapinhas e papel alumínio; conversam muito e anotam os segredos de beleza da colegas, escolhem a cor do esmalte, mas não antes de tirar a cutícula, importante não esquecer de combinar o esmalte com a roupa. Aliás, a roupa. O que vestir? Há uma roupa para cada ocasião, para a noite, para o dia, para o namorado novo, o de duas semanas, para o noivo, para o suposto jantar de negócios e até para a conquista de um novo namorado. E deita-se o guarda-roupa na cama e apesar das dezenas de vestidos, calças e camisetas, nenhuma parece cair bem.

Mas a salvação alcança a quem tem fé, uma amiga chega na hora da indecisão e resolve o problema em minutos, afinal uma verdadeira amiga, entende a aflição da outra. Esta amiga volta a sua casa e trás a roupa tão procurada. Ela põe a roupa e se sente realizada, mas ainda faltam os sapatos; parece fácil, afinal é só combinar as cores, hum...não é bem assim, os sapatos também tem ocasião para se usar, sapatos discretos, de salto alto, tamancos, sandálias, mais com a amiga para aprovar, tudo fica mais fácil e ela sai vitoriosa para o seu encontro.

Eles nem tanto. Dez minutos antes do encontro botam um tênis, uma camiseta, uma calça jeans sem pensar muito se está bonito ou não, passam um desodorante, afinal, mulheres não gostam de homens fedorentos. Olham no espelho, o cabelo parece bom, chega o amigo e algumas palavras são trocadas.

- E aí?

- Como é que vai?

- Encontro?

- Pois é?

- Então volto outra hora.

- Falou!

Ela com toda a produção chega ao restaurante e ele já está lá sentado, ela o cumprimenta com um beijo no rosto:

- Como você demorou! – comenta ele.

- É que minha amiga chegou na hora que eu estava saindo. Há quanto tempo está aqui?

- Uns quinze minutos.

Ele nem nota a produção dela e ela pensa:

"- Estes homens... só falta agora pedir para dividir a conta."

Hugo de Souza Vieira

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Hugo foi meu companheiro de viagens e bar. Dizia que não entendia nada de poesia. Que não via nada de especial numa noite enluarada. Fingia ser frio, prático e nada romântico. Me deu uma bolsa vermelha, escandalosa de aniversário. Um dia, ou melhor, uma noite dessas de poesiarada num bar chamado Vacacherri, deixei-o sozinho na mesa com uma professora chamada Fátima. Em menos de um ano estavam casados e com uma filha linda chamada Katherin. Perdi o companheiro de viagens e de noitadas, mas ganhei uma amiga e uma sobrinha. Sejam felizes, meu queridos.
Hugo, Fátima, a bebê Katherin e eu. Como é gratificante ver  a felicidades de amigos queridos. 
Deus te proteja dos meus olhares
que percorrem tua beleza.


Deus te proteja dos meus pensamentos
que te despem,
que arrancam peça a peça da tua roupa.

Deus te proteja das coisas absurdas
que gostaria de te falar.


E... que Deus me proteja e me desvie
das curvas do teu corpo,
do som sedutor da tua voz, do teu olhar.

Porque se o meu olhar cruzar com o teu...
nem Deus poderá nos proteger
da verdade que aflora pelo meu corpo.

Vaneska Pegoraro

Bula Poetrix

Os leitores deste blog, sabem que Lua Caolha é também o título do meu livro de Poetrix. Já estão carecas de saber que sou uma poetrixta convicta e que faço parte da coordenação MIP. Mas volta e meia, alguém ainda me pergunta o que é Poetrix, qual a diferença do haicai, como se faz poetrix...
Resolvi postar aqui, a nossa bula para que todos possam administrar esse bálsamo e bulir a vontade na poesia.
Só tomem cuidado com as contra-indicações!

BULA POETRIX


O hai-kai é uma pérola; o poetrix é uma pílula (Goulart Gomes)


Em 2009 o POETRIX completou 10 anos de criação. Nesse período ele obteve uma significativa propagação no Brasil, Portugal e em outros países de língua latina.


Com o objetivo de melhor defini-lo, estabelecendo critérios quanto à sua forma e conteúdo que possam orientar mais precisamente os seus autores - os poetrixtas – a Coordenação Geral do Movimento Internacional Poetrix (MIP) divulga, agora, esta BULA POETRIX, conjunto de orientações para o aperfeiçoamento e uniformização desse gênero literário.


1 POETRIX – Informações Técnicas

CONCEITO

Poetrix (s.m.): poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título.

FORMAS MÚLTIPLAS

São criadas em contextos comunicativos e constituídas como derivações do POETRIX; sua elaboração tem como características básicas o dialogismo, a intertextualidade e a polissemia da linguagem. Identificadas e reconhecidas pelo MIP como Duplix, Triplix e Multiplix são mesclagens de dois ou mais poetrix que se compõem com a participação obrigatória de variados autores e com suas poéticas formando sentidos complementares entre si (individualidade-interação-universalidade).


2 CARACTERÍSTICAS DO POETRIX


2.1 O poetrix é minimalista, ou seja, procura transmitir a mais completa mensagem em um menor número possível de palavras e sílabas.

2.2 O título é indispensável. Ele complementa e dá significado ao texto. Por não entrar na contagem de sílabas, permite diversas possibilidades ao autor.

2.3 Não existe rigor quanto à métrica ou rimas, mas o ritmo e a exploração da sonoridade das sílabas é desejável.

2.4 Metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, devem ser elementos constitutivos do poetrix.

2.5 É essencial que haja uma interação autor/leitor provocada por mensagens subliminares ou lacunas textuais.

2.6 Os tempos verbais – pretérito, presente e futuro - podem ser utilizados indistintamente.

2.7 O autor, as personagens e o fato observado podem interagir criando, inclusive, condições supra-reais, cômicas ou ilógicas (nonsense).

2.8 O poetrix deve promover a multiplicidade de sentidos e/ou emoções, não se atendo necessariamente a um único significado.


3 COMPOSIÇÃO


O POETRIX deve ser composto por ao menos um dos seguintes elementos, inspirados nas Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino:


3.1 CONCISÃO: o mínimo é o máximo. O importante é dizer muito, falando pouco. O poetrix é uma pílula, que tem seu propósito determinado; é um projétil em direção ao alvo;

3.2 SALTO: é a metamorfose da idéia inicial, provocada no segundo ou terceiro verso da estrofe, acrescida de outros significados, permitindo uma nova perspectiva de compreensão do poetrix;

3.3 SUSTO: é o elemento inusitado e imprevisível que provoca surpresa ao leitor; é a fuga do lugar-comum, da obviedade, que desconstrói e amplia horizontes, mostrando outros caminhos, possibilidades, contextos;

3.4 SEMÂNTICA: exploração da polissemia de determinadas palavras ou expressões, permitindo a possibilidade de variadas leituras ou interpretações;

3.5 LEVEZA: jeito multifacetado de utilização da linguagem. Nesse sentido, o uso de imagens sutis deve trazer leveza, precisão e determinação ao poetrix e, com isso, provocar, no leitor, a abertura de renovadas construções mentais impregnadas de imprecisões e indeterminações, de novas possibilidades de interpretar a realidade, de desanuviar a opacidade do mundo.

3.6 RAPIDEZ: máxima concentração da poesia e do pensamento; agilidade, mobilidade, desenvoltura; busca da frase em que todos os elementos sejam insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado;

3.7 EXATIDÃO: busca de uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação;

3.8 VISIBILIDADE: qualidade de expressar e pensar imagens, colocando visões em foco; reflexo da qualidade imagética do poetrix, em cor, sombra, contorno e perspectiva; é o substantivar da poesia;

3.9 MULTIPLICIDADE: expressão da pluralidade de possibilidades intertextuais e polissêmicas, provocando interações e criando novas formas;

3.10 CONSISTÊNCIA: através da fuga das obviedades, dos lugares-comuns, buscando expressar-se de forma original. O poetrix rompe, naturalmente, com antigos esquemas simplificantes e reducionistas e investe num sistema complexo, cujas categorias são opostas à simplicidade: a complexidade, a desordem e a caoticidade, próprias de sistemas não-lineares, capazes de realizar trocas com o meio envolvente.


4 INDICAÇÕES:

4.1 EXPLORAR O PODER DO TÍTULO,. para o qual não há limite de sílabas. Uma das grandes vantagens do poetrix é a existência do título, que habitualmente não existe no hai-kai.

4.2 MINIMALIZAR. Eliminar todas as palavras que estão sobrando. Escrever um poetrix é lapidar um diamante. Raramente um texto está pronto em sua primeira versão. É necessário, sempre, aprimorá-lo.

4.3 PESQUISAR. Uma idéia original pode ser enriquecida com informações complementares, ampliando-a em conteúdo e significado.

4.4 UTILIZAR FIGURAS DE LINGUAGEM. Em todas as formas poéticas, o uso de figuras de linguagem, metáforas, tropos e imagens enriquecem bastante o texto.

4.5 PERMITIR QUE O NÃO-DITO FALE. Evite menosprezar a inteligência e a perspicácia do leitor. O poetrix deve instigá-lo a buscar significados nas entrelinhas, a descobrir outros contextos e sentidos.


5 CONTRA-INDICAÇÕES:

5.1 EVITAR AS ORAÇÕES COORDENADAS. Um poetrix não é uma frase fragmentada em três partes.

5.2 NÃO CONFUNDIR POETRIX COM HAI-KAI. Para isso, é importante conhecer, também, os fundamentos do hai-kai, que tem suas próprias características.

5.3 CONJUNÇÕES EMPOBRECEM O POETRIX: mas, contudo, porém, todavia, não obstante, entretanto, no entanto, pois, geralmente não servem para nada em um poetrix, podendo ser eliminadas sem prejudicar o texto.

5.4 NÃO FORÇAR RIMAS. Poetrix não é trova. Às vezes pode-se dispensar completamente uma rima utilizando-se bem o ritmo, a sonoridade e a riqueza semântica das palavras.

5.5 POETRIX NÃO É PROVÉRBIO, MUITO MENOS DEFINIÇÃO. Muito menos, frase de parachoque de caminhão.


Coordenação Geral do Movimento Intenacional Poetrix




Poetrix(ando)

Brinco
de colar
pérolas

Marilda Confortin
Dois (pre) tensos poemas 
de Maurício Marques Canto JR

 nefelíbata inimputável
imputrescível
mamparrea tua veleidade
indefectível.

-***-

o cigarro é o futuro
prazer da queima poluição

medida cínica da morte
tragar funesta solidão

Entrevista com o poeta JB Vidal

ENTREVISTA COM O POETA JB VIDAL

                                        por Marilda Confortin


Conheci João Bosco Vidal em Curitiba, no Café & Cultura, onde nasceu um movimento batizado de "Quinta dos Infernos" que reunia poetas, músicos, jornalistas, artistas plásticos e outros bichos grilos. Tanto o café quanto o movimento foram devorados em menos de três anos pela massa antropofágica curitibana que insiste em contradizer Lavoisier: Aqui, nada se cria, nada se transforma.

Gaucho  de Bagé, administrador por profissão, JB Vidal atuou no meio empresarial, político e artístico cultural da cidade de Curitiba e do estado do Paraná.  Muitos dos poetas jovens que freqüentam a noite curitibana, foram influenciados pelo seu jeito irreverente de ser. 
Irrequieto, questionador, dono de um texto contundente e de uma língua ferina, sua mãe costumava aconselhar “cuidado com as más companhias, Joãozinho”. Pessoalmente acho que o Vidal  conviveu consigo mesmo por um tempo muito longo e só recentemente compreendeu o que sua mãe dizia.

Tratou de se reinventar. Mudou de residência para Santa Catarina, sem avisar ninguém e agora vive com sua mulher Rosangela numa acolhedora casa em Florianópolis, na praia dos Ingleses, onde tem a piscina mais quente e a cerveja mais gelada do sul do Brasil.

Dedica-se ao seu blog cultural Palavras todas Palavras, escreve diariamente, está com o livro de poesias “Ofertório” no prelo e realiza uma pesquisa sobre personalidades catarinenses que resultará num documentário a  ser lançado ainda este ano.

Estou passando o carnaval em sua casa. Coisa que nunca pensei acontecer. Em outros tempos, já teríamos nos “matado”. Entre uma cerveja e outra, um amigo que chega outro que sai, uma música interpretada pelo violonista GG Felix, Vidal acaricia uma costela que assa na brasa “e não é de boi nelori”, previne ele, enquanto fala sobre as raças de gado mais indicadas para um legítimo churrasco gaucho e conversa sobre literatura, arte, vida.
 Pegando emprestado um comentário do amigo escritor Ewaldo Scheleder que disse “ O Vidal está insuportavelmente melhor”, inicio a inquisição perguntando:





M: - Qual foi o motivo dessa transformação?

JB: - Não sei o que ele quis dizer com isso, eu era pior? Sob que ponto de vista? Melhorei, sob que ângulo? Criei barriga? Fiquei careca? me pareceu mais uma piada do que um pensamento filosófico. O homem nasce para evoluir em todos os sentidos. Nasce bebê e torna-se adulto. Nasce totalmente ignorante e torna-se culto. Evidentemente que é uma minoria, na questão do conhecimento...claro! a maioria continua como se fossem bebês, em razão dos sistemas em que vivem, “maria vai com as outras”, vaca de presépio. Arrastam-se pela vida sem saber do que se trata. Votam em ladrões e acham que eles são muito espertos, cultuam a beleza física como se isso fosse levar a algo mais que uma trepada. Enfim, a humanidade é uma lama que só serve ao banho de alguns poucos. Então, essa evolução do homem é que está me reinventando, me refazendo, imagino. Abandonando as carcaças do percurso, me afastando do que ou quem não me acrescenta nada, e aproximando-se mais de mim mesmo, agora, não antes como você afirmou na sua apresentação. Por fim, te digo que não foi a Ilha de Santa Catarina, foi a vida mesmo. Fiz um balanço muito dolorido, por longo tempo, acho que por três anos de crítica e autocrítica, e o resultado foi mais dolorido ainda, aí você tira lições e muda, ao mudar evolui. Nem toda mudança é crescimento, óbvio. Não foi amadurecimento, não, foi constatação da necessidade de dar um salto à frente, ascender na escala, tentar pelo menos. É mais ou menos isso, em resumo, para não ser chato. Aliás, acho que a maioria dos teus leitores, a esta altura, já clicaram noutros links rs rs

M: - Pode até ser, Vidal. Mas não vou fazer apresentação acadêmica dos poetas. Não sou crítica literária e nem escrevo para adoradores de poetas mortos. Escrevo sobre poetas vivos para pessoas que querem saber o que está acontecendo agora, nesse exato momento. Por falar nisso, como está indo o seu livro Ofertório? Conte-nos.

JB:- Esse conjunto de poemas que chamo de OFERTÓRIO, é, bem provável, o início dessa mudança. Marca um período de reflexões sobre o homem e seu mundo atual. E a partir do meu olhar, tento oferecer o que me vai na alma, ou seja ofereço as experiências dos meus sentidos e de alguns sentimentos. Sendo o mais honesto possível, ofereço-me, poeticamente é claro rs rs.

M: - Do livro Ofertório, vou antecipar para os leitores, um poema visceral, sobre o qual o escritor João Batista do Lago teceu uma longa e rica análise:

OFERTÓRIO-DOR


a dor que ofereço não foi provocada
nem apascentada por mim e a solidão
veio com a chuva, c’os raios
com os anéis de saturno, na cauda do meteoro
fez poeira de lágrimas
e instalou-se nesta podridão

soube então da dor de parir
e parido fui,
da dor da fome e fome senti
da dor do sangue e o sangue correu
em minha’lma gnóstica
a dor assumiu e sobreviveu

quero então oferecer
esta dor maior que o corpo
mais que desprezo e humilhação
mais que guerras e exploração
mais que almas aleijadas
mais que humanos em farrapas degradação

ofereço a dor do amor que amei
da partida sem adeus
da saudade sem sentir
da espera inquietante
do futuro irrelevante
da ânsia divina de morrer

Poema de JB Vidal

(...) “em qual casa ele se encarna para construir o equilíbrio para poder deblaterar sua dor? Eis aqui a questão central: antes de ser “jogado no mundo”, somos “abrigados” na “casa”. Ou seja: antes de tudo – de tudo mesmo – somos “encarnados” na mundanidade das casas. Somente a “casa”, e em especial a “casa natal”, nos fornece os elementos essenciais para o processo de aprendizagem e de apreendidade do mundo. Que imagem fenomenal, caro leitor! Ao ponto de me fazer lembrar da Alegoria da Caverna, de Platão (e traçar uma analogia, aqui e agora, sobre isso tornaria este artigo muito extenso). Quem de nós, porventura, por um instante sequer, não já projetou ou projeta a “sua” casa como “campo de concentração de segurança”? Com certeza todos! Mas, qual é a “casa” dos “sujeitos” que falam nas poesias? É a casa primeira: o corpo. É no corpo que habita a poesia. É no corpo que habita o poeta. É no corpo que a poesia é encarnada. É no corpo que o poeta é encarnado.” 

Trecho da análise de João Batista do Lago, publicada originalmente no site do poeta Vidal: http://palavrastodaspalavras.wordpress.com

M: - Lá pelos idos de 2004, participei de um encontro de poesias no Uruguai. Levei comigo vários livros e poemas avulsos de escritores brasileiros para distribuir entre os poetas estrangeiros. Um deles foi um folder de poesias do JB Vidal, impresso especialmente para o evento e muito bem ilustrado pelo artista visual RETTA. Foi disputadíssimo. O poema COMA causou arrepios entre os participantes:

COMA

nasço e inauguro em mim a trajetória da morte,
início e fim, siameses do útero à campa,
como fonte, me insurjo, resisto,
consciente de sua presença, prossigo
sepultado vivo na matéria,
com a alma esgarçada na miséria
de um momento que ela mesma desconhece,
não há passado para o início não haverá futuro para o fim,
o que será dos meus pensares?
da razão? o que ficará dos sentidos?
das agonias, dos sofreres,
dos sentimentos, penso profundos,
o que será dos meus saberes?
não me falem de exemplos,
experiências, conhecimentos,
como óbolos para quem vem a seguir,
para eles há futuro, esquecer
não me venham com alegorias cenobitas,
relações de fé-imagem, palavras-reveladoras,
crenças obtusas oferecidas em sacras mansões, não!
digam apenas que estou louco,
que me debato em trevas,
que abreviei a trajetória,
que vivo morto por querer viver depois.
 Poema de JB Vidal

 M: - Vidal, me conte como foi escrito este poema?

JB:- Teria minha cara Marilda que contar minha vida, o que seria muito monótono e sem graça. Mas, para matar um pouco da curiosidade, foi escrito numa madrugada fria (curitibana) e não levou mais que 3 minutos. Não houve correções. Como nasceu ficou. Para sua composição não houve uma razão explícita.


É... Vidal é assim. Tem hora que não se consegue arrancar mais nenhuma palavra dele, exceto uma frase como essa que define sua personalidade: ”Me odeie e eu respondo. Me ame e eu me calo”.

Já meio incomodado com minha conversa, pergunta se estou com fome, se quero mais uma cerveja, se não quero dar um mergulho, se... Brinca com Lenon - seu enorme cão akita branco e simpático - que se debruça no parapeito da janela da cozinha com as patas uma sobre a outra, igual um bêbado pedindo uma pinga no balcão. Lanço um osso para o Lenon e arrisco uma pergunta final.

M:- E agora, Vidal? Que tipo de poesia essa nova fase nos reserva? Pode mostrar pelo menos uma?

JB: - Ainda está cedo. Nem sei se já existe uma nova fase e se escrevo sob o império dela, mas realmente tenho escrito muito até porque, agora, tenho todo o tempo disponível para fazê-lo. De qualquer maneira o ambiente da Ilha me entusiasma para novas incursões, como você se referiu estou na fase de pesquisa sobre personalidades catarinenses que tenham sido, realmente, fundamentais para o desenvolvimento político, econômico e cultural do estado a partir de 1960 até os dias atuais. Este livro deverá ser lançado ainda em 2010. Penso, também, editar e jogar pelas praças e feiras, no chão evidentemente, meus 5 livros de poesia, 3 de contos e crônicas e um romance que pretendo finalizar aqui depois de 4 anos escrevendo...é pouco, mas já dá para os críticos se divertirem e manterem seus salários das editoras que compõem o famigerado “mercado editorial”.


Insisto para que me mostre uma poesia nova. Não mostra. É hora de parar com essa conversa. Convida-me para conhecer a poesia imagética que salta aos olhos nos mares do sul de Florianópolis.

Depois, gentilmente manda-me alguns textos por email, dizendo que achou nossa conversa um tanto pobre. Deixo alguns desses textos do Vidal para que degustem e espero que discordem dele quanto a pobreza. Oxalá todos os poetas fossem tão ricos quanto você, Vidal.

ETERNO     

meu corpo no teu
acende a dúvida

ser ou estar

eu!? nós!?

gozo cósmico!?

prazer em deixar-me ir
onde estás ou sejas

sou inteiro em ti

estou metade



PRISIONEIRO


nas mãos
cartas
datas
tempos
épocas
coração rítmico
arritmico
desritmico

meus lábios esmagam versos.


SANTA BOEMIA


Deus!

és o mais sábio dos poetas
pois fizestes morada no cosmos
onde é sempre madrugada!




  Vidal, eu e o violonista GG Felix, nos Ingleses - Florianópolis

Obrigada pelo dedo de prosa, Vidal. Obrigada pela hospedagem,  amiga Rosangela. Obrigada pela música, GG. 

Nos vemos por aí...

Quase poema e música

Quase

Parece que foi ontem.
Eternidade.
Ontem fez um ano.
Ou quase.

Quase morri, quando vi
nosso caso implodir:
Camicase.

Quando te vi sumir,
nas brumas de Avalon,
pensei ser o fim
― o Armagedom.
Mas, sobrevivi,
ou quase.

Teu rosto foi ficando vago,
Como a lembrança de um sonho,
num quadro.

Teu posto ainda está vago,
mas logo reponho.
Tenho um estoque de amor
guardado, novinho em folha.
Prontinho pra dar
para quem ocupar o teu lugar.

É... amor,
a vida é feita de quases
frases, fases.
Essa já passou,
ou quase.

Rafa Gomes foi fisgado por esse poema, quando eu ainda estava escrevendo, lá no Bardo Tatára. Ele pegou o rascunho da minha mão e falou: É meu! Você escreveu pensando em mim, porque acabei de acabar meu namoro. Vou fazer um reggae
Bom, na verdade eu estava escrevendo pro meu filho, que também tinha acabado o namoro, mas, quem sou eu pra discutir com o Rafinha... 
E ficou linda a música. Até ganhou um festival. Ouçam aí: 

QUASE
letra de Marilda Confortin
música de Rafael Gomes


Direção: Rafael Lopes
Direção de Fotografia: Rafael Lopes / Catarina
Edição: Rafael Lopes
Cameras: Helen / Catarina / Rafael Lopes
Roteiro: Mineiro / Rafael Lopes
Video produtora: MF Brothers
Agradecimentos: Marilda, Tatára, Mineiro, Guto Teixeira,
Daniel Peçanha, galera da "Segunda Autoral" e Isabela Freitas. 

VALEU RAFA