Flagrante


(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a co-autoria e cumplicidade do personagem principal)

Flagrante 

Julia trabalhava comigo no sétimo andar de um edifício comercial no centro de Curitiba. Estávamos no horário de almoço. Ela fazia uma ikebana de rosas vermelhas e assistia o movimento da cidade pela janela.

De repente ouviu uma gritaria lá em baixo. Viu um homem correndo e uma mulher gritando desesperada: “Pega ladrão! Pega Ladrão!”

As pessoas pararam na calçada como se estivessem filmando uma cena congelada para um filme do Fellini.

Um carro invadiu a calçada e freou bem na frente do ladrãozinho. Julia nunca diferenciou marcas nem modelos de carros. Só diferenciava Fusca e Kombi. Disse-me que não era nenhum desses. Do tal veículo ela viu saltar um belo homem de uns trinta anos. Ou seria quarenta? Julia não diferenciava idades também, mas naquelas alturas do edifício e da idade ficou feliz por ainda diferenciar um homem de uma mulher.

Com destreza de quem faz isso todos os dias, o homem derrubou e imobilizou o meliante. Deu uns tapas no traseiro do cara, tirou o cinto (dele, meliante) amarrou as mãos (dele, meliante) e prendeu-o vergonhosamente numa lixeira da prefeitura.

Devolveu a bolsa da mulher, beijou sua mão e fez uma reverência típica dos toureiros para receber os aplausos dos transeuntes. ´

Tudo aconteceu muito rapidamente. Eu nem vi. Só vi quando Julia retirou uma rosa vermelha da ikebana, beijou-a, gritou “Olé!” e jogou-a para o herói anônimo.

Ele fez um sinal para que ela esperasse. Julia obedeceu. Ele subiu. E como subiu! E Julia subiu pelas paredes. Eu me tranquei no banheiro e fiquei espiando. Afe Maria!

Sou madrinha de casamento deles. Vocês devem conhecê-los. Eles costumam “curtir” as histórias publicadas aqui...


(marilda confortin)

"Melhor morrer de vodca que de tédio"


"Melhor morrer de vodca que de tédio"

Por Marilda e Douglas - os fabricantes

- Como se escreve três em italiano?
- Não tenho certeza. Escreve quatro. Pronto.

E assim nasceu a festa “Quatro giorni in Itália”.
Éramos poucos, mas muito loucos. Queríamos mudar o humor da cidade. Inventávamos festas, roteiros turísticos, shows, festivais, exposições, concursos, mil projetos. Poucos aprovados, mas isso não importava. Nosso negócio era polemizar, polinizar.

- Escreve uma frase aí pro cartaz do dia 13 de maio.
- Ta. A Lei Áurea foi um serviço de preto.
- É preconceituosa. Faz outra.
- Então ta: A Lei Áurea NÃO foi um serviço de preto.

E a Jaine fazia o cartaz e o Diabo espalhava na cidade inteira. O circo pegava fogo. Apanhávamos dos pretos e dos brancos, depois saíamos todos juntos sambando no mesmo bloco na Avenida Marechal. Liderados pelo Glauco, suas porta-bandeiras e a bateria de todas as escolas de samba. Ninguém entendia nada.

Pra comemorar as diferenças criativas fazíamos uma comidinha na casa da Elisa e Douglas.  Éramos sócios na fabricação de uma vodca chamada Majakovskj, famosa nos bailes do Operário. Cada garrafinha levava uma frase do escritor amarrada no gargalo.
Jaine e Fernando Alexandre foram cúmplices da criação do desenho, da marca, da divulgação, dos porres e culpados pelo fanatismo criado pela maledeta.

- Outra vodka, tá louco!
Poeta Vladimir, em nanquim preto, só nos observava pela na janela. Belíssima arte, Jaine Suniê. Quem não gostava da vodca comprava só a garrafa. Era o mesmo preço. E quem gostava trazia a garrafa pra encher de novo. Era o mesmo preço. Não dava lucro, mas era divertido. Todos os intelectuais da cidade eram nossos clientes. Rei Bola era o divulgador oficiais para Curitiba e Rio de Janeiro. Tina e Suzana davam o maior apoio e o Armando nos protegia. Ele parou de beber a outra vodca a 70 graus porque disse que derretia a gengiva. Não adiantou nada. A Majakovskj derretia corações.

Politicamente incorretos. Todos nós.

- Que tal criar espaços para fazer festival de rock, poesia, música erudita, aproveitar a vinda do Dalai Lama e do Papa pra inaugurar e acabar com esse carnaval medíocre de Curitiba?
- Taí! Boa! Daí, quem não curte carnaval vem pra cá.

E lá fomos procurar áreas públicas ociosas. Tinha um monte. O Cachorro-Louco (Leminski, prá quem não sabe) indicou um lugar porreta onde costumava fazer piquenique. Voltamos cheios de carrapicho nos cabelos, pico-pico nas roupas e fomos direto pro bar do Pudim beber uma vodca e escrever o projeto.

- Vocês estão brincando comigo? Primeiro aquela história de Albergues para a Juventude Transviada e agora isso?
- Mas é uma boa idéia...
- Boa idéia é a cachaça que vocês bebem! Sumam da minha frente, cambada de hereges!

Foda-se. Prefeito idiota. Perfeito idiota. (Enga)vetou o embrião da Pedreira Paulo Leminski e muitos outros. Só porque éramos loucos e jovens.

Falando em Paulo, ele era um dos clientes mais assíduos da Majakovskj.  Somos cúmplices ou culpados pela sua poesia e sua partida prematura?

Como bem disse o mal dito Douglas, os sobrenomes e a biografia completa daquele  time, só passando por cima de nossos cadáveres. Pra isso não falta muito...
Um brinde aos bons e velhos amigos!


(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a co-autoria e cumplicidade do personagem principal)


Passos no final da tarde - de Tonicato Miranda

de Tonicato Miranda 
às mulheres que amo e sempre amarei

Quando vou andando
no final da tarde
caminho sempre solto
totalmente envolto
pelo calor se esvaindo
de um Sol que já não arde
Quando vou andando
no final da tarde
vou sempre pensando
nela e nos pássaros
a seguir meus passos
indo por pedras sem alarde
Quando vou andando
no final da tarde
de um dia bonito assim
que não queria ver o fim
penso como a vida é breve
e quão bela esta parte
Quando vou andando
no final da tarde
sinto no peito uma alegria
sou esta luz a gritar o dia
retardando para não deixar
a noite vir e roubar esta arte
Quando vou andando
no final da tarde
o coração parece todo pulsa
esta bela emoção avulsa
tenho saudade de ainda há pouco
sou um marciano sem Marte
Quando vou andando
no final da tarde
vou com meu músico mais dileto
tocando a música muito perto
meus ouvidos ouvem mais
músicas vindas desta tarde
Quando vou andando
no final desta tarde
vou amando como jamais amei
este amor de plebeu ou de rei
parece vai explodir-me no peito
de tanto que padece em amar-te
Quando vou andando
no final da tarde...
Curitiba, 29/11/2011
Tonicato Miranda

salada & leitura

Salada e leitura

Por Marilda Confortin


Ler é como comer salada. Todos sabem que é um alimento indispensável para a saúde do corpo e para o desenvolvimento da inteligência, mas poucos comem. E para piorar, muitos passam esse desgosto, esse desprazer para seus filhos, netos e alunos. Aí quando a criança fica fraquinha, apática e atrasada, os adultos começam rezar aquela velha ladainha: “tem que ler, tem que ler”. Rezar sem fé não adianta. Falar sem crer é mentir. Teorizar sem praticar é demagogia.  

Todos nós somos atraídos pela apresentação do prato de salada e pelo ritual do preparo. Se a criança vê diariamente um adulto satisfeito na cozinha, escolhendo as melhores folhas, misturando cores e formas diferentes, experimentando, sorrindo de prazer e arrumando a mesa com aquele belo prato em destaque, com certeza vai querer comer aquela salada gostosa. E não desenvolverá preconceitos contra pepinos, abacaxis e rúculas, porque saberá que algumas amarguras e acidezes são os temperos da salada da vida. São referenciais para doçuras, nos fortalecem e apuram os sentidos.  

Assim é a formação de leitores na escola. Começa pela cozinha, digo, pela biblioteca. 

Deve ser um lugar agradável, iluminado, limpo onde o estudante possa ir e vir mesmo que ainda não esteja faminto. Abrir o apetite é fundamental. Não se deve enfiar livros goela abaixo. É indigesto. A curiosidade e a fome despertarão naturalmente ao observar professores e outros estudantes da sua idade devorando prazerosamente pilhas de livros.

O acolhimento é muito importante. Ninguém deve ser empurrado ou enxotado da cozinha, digo, da biblioteca. O estudante ou professor precisa se sentir querido, acolhido naquele espaço. Precisa saber que aquela sala faz parte da sua escola tanto quanto o pátio, a sala de computadores ou a cancha de esportes. Deve sentir confiança na pessoa que “cuida” da biblioteca, pois sabe que ela é competente, capacitada e principalmente gosta muito de salada, digo, de leitura. 

Nem todas as folhas servem para fazer salada. Algumas são até venenosas ou quando mal escolhidas podem conter ovinhos de preconceitos que se desenvolverão feito pragas na cabeça  do leitor, transformando-o num adulto doente. Por isso é importante escolher muito bem as folhas dos livros servidas na biblioteca.

Mas, nem só de folhas, se faz uma salada. Pode misturar legumes, frutas, massas, molhos, etc. A biblioteca deve oferecer uma diversidade atraente que atenda todos os gostos e idades. Dos paladares iniciantes aos mais sofisticados e introduzir gradativamente outros repertórios no menu. Além dos clássicos repletos de saudáveis e deliciosas folhas de papel, deve-se oferecer também as contemporâneas e recém nascidas folhas de papel virtual, na forma de livros eletrônicos, blogs e portais. Para os resistentes ou aqueles que se atraem mais pelo recipiente do que pelo conteúdo, a biblioteca deve oferecer opções chamativas, no formato de contação de história, recital e varal de poesia, gincana e oficina, clubes e grêmios literários, filmes, música, dança, teatro, pintura, escultura, jogos, computador, enfim, depois que pegar gosto e descobrir que se pode adquirir conhecimento de muitas maneiras, o estudante não dará mais tanta importância para a cor ou formato da tigela da salada. 

Fácil despertar o gosto pela salada e pela leitura, não é? Esse foi o desafio dos nossos pais e professores. Somos filhos do século passado. Por isso a maioria de nós come pouca salada (só quando adoece) e lê menos ainda (só livros de auto-ajuda para amenizar as dores ou apostilas de macetes para passar nos concursos).  Somos uma geração raquítica...

Se a receita acima pareceu difícil, veja o que esse novo milênio espera de nós, de nossos filhos e de nossos alunos:  

- O indivíduo que não desenvolver a capacidade de acessar a informação nas mais diferentes e complexas mídias, estará fora do mercado de trabalho;
- O indivíduo que souber acessar a informação, mas não conseguir compreendê-la, criticá-la, classificá-la em boa ou má, útil ou inútil, estará fora do mercado.
- O indivíduo que souber acessar e compreender a informação, mas não conseguir traduzí-la de forma objetiva e clara, na forma verbal e escrita, estará fora do mercado
- O indivíduo que souber acessar, compreender, traduzir, mas for tímido ou egoísta suficiente para não compartilhar e não produzir novas informações, será demitido ou falirá sua empresa. 

Este é o desafio da nossa geração: Formar cidadãos leitores e escritores, capazes de acessar, compreender, produzir, reproduzir e compartilhar informações, sem explodir o planeta.
Sem energia para encarar? Coma mais salada. Leia e escreva mais...

MAR(ILDA) - por Sérgio Edvaldo

Amigos são tudo de bom. Sérgio Edvaldo é um poeta de Presidente Prudente.  Costumamos nos encontrar nos saraus da vida. Me presenteou com esse poema. Obrigada, querido.
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Uma pausa na resenha sobre a teoria de Piaget.
(é por isso que saiu assim... rs... beijos)

MAR(ILDA)


sentada na areia
em tardes de Itapuã,
a menina contemplava
o mar.

cheia de si naus
vazia de solidão urbana,
com...tem...pla...va
o mar e suas ondas
sem garrafas-correio...

sentada na areia
em tardes de Itapuã,
a menina passsssss...mou-se
em ver como era pequeno o mar
(na medida de um abraço)...

e cheia de si naus
no peito um batel, leme lento,
a menina se lembrou que Moisés
abrira o mar vermelho,
e riu eternamente...

o mar menstruava
azul em seus olhos.

(Sérgio Edvaldo - 6/11/2011)
Sérgio em Armação - SC - no Sarau do Lancelot
 

Apurando os sentidos


Manhãs têm gosto de orvalho.
Pequenos Quixotes lutam contra as ondas. 
Crianças: Adultos ensaiando tsunamis.
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A tarde tem cor de sol.
Garotos pedalam na orla curvilínea. 
Adolescentes: Homens praticando amor com suas magrelas.
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A noite tem cheiro de maresia.
Namorados ensaiam pecados nos muros. 
Amor: plânctons que fluoresce no escuro.
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Bienal 

Muita gente falando ao mesmo tempo
e as palavras - mudas
presas nos livros.

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Praça da Poesia

Primeiros estranhamentos: Jovens poetas manoeldebarrosando insignificâncias.
Últimos entranhamentos: Velhos poetas ainda buscando significados nos signos.

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Poetas X críticos
O crítico fala, embasa, explica e disseca a poesia como se fosse rã.
O poeta cala, engasga, extirpa e seca suas tripas como se fosse lã.

(Marilda Confortin - 10ª Bienal do Livro - Salvador - BA - 11/11)

Crônicas de Itapuã I

O sol nem acabou de derreter no mar de Itapuã e lá veio aquele fiapo de lua, uns três palmos atrás seguindo a mesma trilha. Mas não há de ver que está correndo atrás do sol, aquela baianinha arretada? Pensa que não vi, é? Vão se esconder no escuro, lá embaixo da noite, né...

Adalberto há mais de uma hora sentado na mesma pedra que eu, assuntou:

- Ta ouvindo a pedra que ronca?

Contou que nasceu em Cachoeira e agora mora em Salvador. Todo o dia 25 de junho, Cachoeira vira capital da Bahia, me disse orgulhoso de sua terra natal. Me contou sua vida toda. Não foi uma história triste, não.

Crônicas de Itapuã II

Outra coisa muito boa foi uma cachacinha que tomei. Indicada pelo Bojan, um esloveno que trabalha seis meses aqui e seis meses na Eslovênia. Ele e sua mulher Liomar gerenciam a Pousada Poesia onde me hospedei. Eita lugarzinho gostoso. Bem que eu podia morar aqui, namorar aqui, morrer aqui.
lendo o livro Minha guerra alheia, da Marina Colassanti - na piscina da pousada que tem vista pro mar e um portãozinho no muro que já dá na areia.

Crônicas de Itapuã III


Ontem fui passear de SalvadorBus, um ônibus turístico de dois andares, igual ao de Curitiba.

O ponto do ônibus era perto da praça do Vinícius. Passei lá e dei um abraço nele. Contei que você anda ouvindo o Samba da Benção, que tem saudades da Bahia de outros tempos, que tem andado muito triste e isto me preocupa. Ele deu aquele sorriso de poeta fingidor e começou a falar aquela parte da música que os homens adoram e as mulheres detestam:“Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza. Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Um molejo de amor machucado, uma beleza que vem da tristeza, de se saber mulher, feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão”.

Pópará, seu Vinícius e seu Ton(icato). É melhor ser alegre do que ser triste, vissi? Isso de mulher ser feita pra sofrer pelo seu amor e ser só perdão é resquício da escravidão. Masoquismo puro. E homem que idolatra esse tipo de mulher é aquele tipo que casa com uma Amélia pra ter filhos e tem dúzias de amantes pra conseguir sobreviver (pensa que é Vinícius). E se não tem, fica azedo, mal humorado e tão infeliz quanto a esposa. 

Ele disse que é por isso que estou sozinha. Pode ser, meu poeta. Mas não vou me fazer de besta só pra segurar marido, não. Estar só é uma arte, uma necessidade, todo poeta sabe disso. Somando todos os momentos que passei acompanhada por pessoas interessantes que depois seguiram seu rumo, cheguei a conclusão que tenho mais horas felizes do que a maioria das mulheres casadas que conheço. Até porque a maioria das esposas não conhece o próprio marido e a maioria dos maridos deixa de se interessar pela esposa assim que ela se torna mãe.  Viver uma vida inteira com uma pessoa só e não conhecê-la é um desperdício de vida, é quase um crime. Mas isso não tem importância nenhuma nesse momento. Vamos mudar de assunto, poeta. Que tal dar uma volta em Itapuã, tomar uma cachacha de rolha...

Vinícius não pode passear comigo. Estava todo amarrado, preso em fitas de isolamento. Disseram que prenderam ele porque andou aprontando umas por aí e não que mais ficar plantado naquela praça conversando com turista besta feito eu. Senti pena dele preso daquele jeito. Que dó. Um poeta que sempre prezou tanto pela liberdade...